Eu gosto de como você se empresta para a minha vontade de sentir de  novo. Saio da sua casa feliz porque estava frio e roubei uma blusa com  duas respingadas velhas e já lavadas de óleo. Eu  gosto da sua barriga porque você consegue a santíssima trindade da   barriga perfeita: velho, intelectual, sarado. Você tem aquela pele já   meio descolada dos ossos e isso me enlouquece. É o vão de quem viveu   mais. É o labirinto onde eu fico quando você acha que eu não estou ali.   Entre seus ossos e músculos.Você  é um preguiçoso, espalhado tão elegantemente com as cuecas largas,  em  seu sofá com almofadas de mocinha. Absurdamente animado com milhões  de  coisas maravilhosas que você lê ou escuta pela metade, querendo saber   tudo ao mesmo tempo pra esquecer mais rápido e de uma vez. Querendo não  saciar das coisas, pra caber mais do resto todo que nunca chega. Você   tem a noção mais bonita de insuficiência e exagero que já vi. Você tem  o  desapego pós empolgação menos levado a sério que já vi. Mas isso  tudo é  escondido pelos seus olhos de desligamento. É quase  desinteressante o  seu funcionamento, não fosse tão digno de me  emprestar um pouco de  umidade pra secura que trago da rua.Você  tem todos os gominhos no lugar como se fosse um garoto de academia.   Isso me faz rir embaixo do edredom, olhando a tirinha suicida do meu   sutiã que se jogou solitária e antes da hora. Você fez a escolha da vida   dos homens desgastados e pra dentro, mas é como se os deuses te   mandassem, ainda assim, doses diárias de uma beleza que me surpreende a   cada vez que tento te transformar em qualquer coisa da minha tarde. Não   precisa pente, banho, esteira, sol, peso, gilete. Você acorda   naturalmente com a beleza que eu só tenho, ao acordar, se acordar duas   horas antes.Eu  gosto de você porque são tantos milhões de coisas que você sabe, mas   você fritou e não diz nada. Você sabe tanto que tem preguiça. Eu percebi   que minha ansiedade é a típica da garota boba que leu nove livros,  sabe  de sete músicas, viu quatro filmes, conhece dois lugares e acha  que  ainda ama um homem. Quem sabe mesmo, nem começa a dizer. É  tanto que dá  preguiça. Seria uma vida a dizer mas você já esqueceu ou  dormiu no meio.  Você precisa sim da sua biblioteca que dá cinco voltas  no teto pra ser  amado. Mas precisar disso te enche da vontade deliciosa  de deixar o que a  gente precisa pra lá.Você  faz com você o que faz com todos os livros. Para na metade. Assim   sobra tempo de assassinar minha roupa e depois dormir enquanto eu conto   os pedaços pela casa. Meus e das minhas histórias.Então eu gosto de você, de novo, porque não falamos nada. Você  porque  dormiu de novo ou quer demais. Eu porque quero de novo ou dormi  demais.  Você porque sabe muito. Eu porque não sei porra nenhuma.E  o portão enorme de vidro se fecha com você meio curvado, malditas   costas. Faz minha vigília até o carro como um pai e isso me dá vontade   de voltar. Parece errado, mas pra mim, pros defeitos que me formaram e   por isso mesmo é só o que posso sentir quando sinto sem script, sinto   que as plantas estão onde deveriam. E meu carro, e tudo. Se encaixa. Eu   sou o senhor cabeça de batata esperando seu bigode encaixar em mim  pelas  mãos das crianças que nunca deixam de brincar com os velhos  brinquedos  de verdade. De novo, levando a pureza bem a sério pra pelo  menos existir  um pouquinho em meio a tudo isso. E eu, você não sabe como te agradeço,  vou escutar música alta no carro e nem reparar que o sinal abriu.
-Tati Bernardi 

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