Combinamos que não era amor. Escapou ali   um abraço no meio do escuro.  Mas aquilo ali foi sono, não sei o que   foi aquilo. Foi a inércia do amor  que está no ar mas não   necessariamente dentro de nós.A gente foi ao  cinema, coisa que namorados fazem. Mas amigos fazem também, não? Somos  amigos. Escapou   ali um beijo na orelha e uma mão que quis esquentar a  outra. Mas a   gente correu pra fazer piadinha sexual disso, como  sempre.Aí teve aquela cena também. De quando eu fui te dar tchau só com a  manta branca e o cabelo todo bagunçado. E você olhou do elevador e me  perguntou: não to esquecendo nada? E eu quis gritar: tá, tá esquecendo  de mim. E você depois perguntou: não tem nada meu aí? E   eu quis gritar:  tem, tem eu. Eu sempre fui sua. Eu já era sua antes   mesmo de saber que  você um dia não ia me querer.Mas a gente combinou   que não era amor. Você    abriu minha água com gás predileta e meu sabonete de manteiga de cacau.    E fuçou todas as minhas gavetas enquanto eu tomava banho. E cheirou  meu   travesseiro pra saber se ainda tinha seu cheiro. Ou pra tentar  lembrar   meu cheiro e ver se ele ainda te deixa sem vontade de ir  embora. Mas   ainda assim, não somos íntimos. Nada disso. Só estamos  aqui, reunidos   nesse momento, porque temos duas coisas muito simples  em comum: nada   melhor pra fazer. Só isso. É o que está no contrato. E eu assino  embaixo. Melhor assim. Muito melhor assim. Tô super bem com tudo isso.  Nossa, nunca estive melhor. Mas não faz isso. Não me olha assim e diz  que vai refazer o contrato. Não   faz o mundo inteiro brilhar mais porque  você é bobo. Não faz o mundo   inteiro ficar pequeno só porque o seu  chapéu é muito legal. Não deixa   eu assim, deslizando pelas paredes do  chuveiro de tanto rir porque seu   cabelo fica ridículo molhado. Não faz a  piada do vampiro só porque  você  achou que eu estava em dias estranhos.  Não transforma assim o  mundo em  um lugar mais fácil e melhor de se  viver. Não faz eu ser assim tão absurdamente feliz só porque eu tenho  certeza absoluta que nenhum segundo ao seu lado é por acaso.Combinamos  que não era amor e realmente não é. Mas esse algo que é, é realmente  muito libertador. Porque quando você está aqui, ou até mesmo na sua  ausência, o resto todo vira uma grande comédia. E   aquele cara  mais novo, e aquele outro mais velho, e aquele outro que   escreve, e  aquele outro que faz filme, e aquele outro divertido, e   aquele outro da  festa, e aquele outro amigo daquele outro. E todos   aqueles outros viram  formiguinhas de nariz vermelho. E eu tenho vontade   de ligar pra todos  eles e falar: putz, cara, e você acha mesmo que eu   gostei de você?    Coitado.Adoro como o mundo fica coitado, fica quase, fica de mentira,    quando não é você. Porque esses coitados todos só serviram pra me    lembrar o quão sagrado é não querer tomar banho depois. O   quão  sagrado é ser absurdamente feliz mesmo sabendo a dor que vem   depois. O  quão sagrado é ver pureza em tudo o que você faz, ainda que   você faça  tudo sendo um grande safado. O quão sagrado é abrir mão de   evoluir só  porque andar pra trás é poder cruzar com você de novo.Não é   amor não. É  mais que isso, é mais que amor. Porque pra te amar mais, eu tenho que te  amar menos. Porque pra morrer de amor por você, eu tive que não morrer.    Porque pra ter você por perto um pouco, eu tive que não querer mais   ter  você por perto pra sempre.E eu soquei meu coração até ele diminuir.   Só  pra você nunca se assustar com o tamanho. E   eu tive que me fantasiar de  puta, só pra ter você aqui dentro sem   medo. Medo de destruir mais uma  vez esse amor tão santo, tão virgem. E   eu vou continuar me fantasiando  de não amor, só pra você poder me   vestir e sair por aí com sua casca de  não amor.E   eu vou rir quando você me contar das suas meninas, e eu vou  continuar   dizendo “bonito carro, boa balada, boa idéia, bonita cor,  bonito   sapato”. E eu vou continuar sendo só daqui pra fora. Porque   no  nosso contrato, tomamos cuidado em escrever com letras maiúsculas:   não  existe ninguém aqui dentro.Mas quando, de vez em quando, o seu   ninguém  colocar ali, meio sem querer, a mão no meu joelho, só para me   enganar  que você é meu dono. Só para enganar o cara da mesa ao lado que você é  meu dono. Eu vou deixar. Vai que um dia você acredita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário